CARNE DE PESCOÇO

07 abril 2007

Marquinhos

-Mas que porra é essa? Falou para si mesma Ana Luiza enquanto entrava em sua S.U.V. importada. Dirigiu até sua casa com pressa. Entrou no condomínio, mal estacionou em frente a porta, entrou gritando – Marquinhos, vem aqui, já!
Marquinhos largou o livro que lia, assustou-se com o grito da mãe e desceu correndo as escadas. Viu a mãe com uma cara muito brava e logo perguntou – Que que eu fiz? Maria Luiza tirou uma fotocópia de dentro da bolsa e mostrando para Marquinhos perguntou – Mas que porra é essa? Que porra é essa, Marquinhos? Botou as mãos na cintura, suspirou profundo, e continuou – Como é que você me apronta uma como essas? Passei a maior vergonha dentro do gabinete da diretora.
Marquinhos fez cara de quem foi descoberto, aquela sensação de arrependimento, o milésimo de segundo no qual acreditamos que o crime não compensa. Começou a olhar para o chão. Sua mãe continuou – Porra, Marquinhos, ontem quando fui chamada para comparecer na diretoria do colégio, imaginei que seria por algo interessante, e não por essa vergonha aqui. Abriu bem o papel fotocopiado e esfregou na cara do filho. A empregada, Zilma, que trabalhava com a família há 15 anos, veio da cozinha, assustada com os gritos e perguntando o que estava acontecendo.
- Esse infeliz desse maluco me aprontou uma boa, Zilma. Olha porque eu fui chamada no colégio dele, olha isso Zilma!!


Paulo André afrouxou a gravata, deu tchau para sua secretária e entrou no amplo elevador panorâmico do arranha-céu que abriga seu escritório. A vista era a da baía da Guanabara. Discou do celular para um amigo, recebeu rapidamente a resposta.
- Fala PA, saindo do escritório?
- Então, sexta-feira, passa lá em casa, a Ana vai fazer um Hot Pot asiático qualquer.
- Perfeito, respondeu o amigo, já estava marcado, só vou passar para pegar nossa sobremesa.
O Audi partiu para a zona sul, Paulo André escutava Oasis num volume ensurdecedor.

- Minha nossa Senhora Padroeira, o que é isso dona Ana, o que esse menino fez? Perguntou aflita Zilma, secando as mão num pano de prato branco.
- Fez o que não devia, Zilma, fez o que não devia, parece que não aprende!
Marquinhos esboçou um discretíssimo sorriso, como quem se orgulha pelo estrago que causou, mas evitou que a mãe percebesse, afinal, sabia que estava em maus lençóis.
- Jesus Pai Amado, esse menino nunca foi de aprontar.
- E não é a primeira vez que eu peço para evitar isso, não é Sr. Marquinhos? Não é?

O celular de Paulo André tocou, ele não teria escutado se não fosse o vibracall. No outro lado Nunes, seu chefe.
- Já está na rua PA?
- Claro, indo pra casa. Tu vai aparecer essa noite?
- Conta comigo, precisa de sobremesa?

Zilma pensou em ficar ao lado de Marquinhos, seu pequeno amor há anos, mas preferiu escutar um pouco mais Ana Luiza.
- Olha isso Zil, olha a redação que essa peste apresentou no colégio. Uma coisa simples, “descreva em modo dissertação o seu passatempo predileto”, simples, muito simples, mas não, ele não pode simplesmente fazer essa simples redação, ele não consegue, não é Marquinhos? Não, não...
Zilma pegou o papel e começou a ler

“Rio de janeiro, 25 de abril de 2006.
Meu passatempo predileto é baseado na maravilhosa presença dos meus amigos e na maravilhosa arte da música. Sempre que estou estressado, incomodado com algo, cansado dos meus deveres, ou simplesmente sem fazer nada, preparo o encontro com meus amigos. É bastante simples e muito gostoso, quase um jogo. Depois de uma bela refeição, geralmente um jantar, eu e meus amigos nos reunimos na ampla sala da minha casa estirados nos confortáveis sofás. Então preparamos o computador, já abastecido de umas 45 mil músicas, conectado com o sistema de som da sala. A conversa vai evoluindo, todos animados. Nesse momento começa o entorpecimento da razão social e o desabrochar da razão humana. Alcançamos esse estágio fumando um haxixe de ótima qualidade e tomando um bom vinho, geralmente europeu, salvo quando um dos amigos trás suas especialidades californianas. Cada um tem o direito de escolher e programar duas músicas por vez, de maneira anti-horária, enquanto a bola passa no sentido horário. O vinho não passa, é claro. Conforme as mentes se libertam a conversa toma rumos deliciosos e o fundo musical é impressionante. Por vezes percebemos uma excelente canção, faixa lado B de um álbum antigo de um grupo do passado, isso toca a todos e o amigo que escolheu recebe vários elogios. Não tem ganhador, mas sempre tem um dos colegas que se destaca colocando umas obras de arte esquecidas do Frank Zappa, It’s a Beautiful Day, Jeferson Airplane, Nick Mason... e outros se destacam mostrando estilos novos que, apesar da resistência do grupo, nos surpreendem, como Alias & Tarsier, Amon Tobin, Mogway, Mobi, Muse, etc. Num dado momento a cabeça está tão longe e a música tão perto que parece que a caixa de som está dentro do nosso peito, a gente tem lembranças gostosas do passado e planos geniais para o futuro. Nessa altura todas as músicas, principalmente os clássicos como Rolling Stones, Pink Floyd, Led, Kinks, Red Hot, Pearl Jam, entre outros, nos levam a um estado de transe e nos mantém sorrindo. O cansaço vem chegando, alguns dormem em casa, outros esperam melhorar para poderem voltar, de táxi é claro. E assim passo o meu tempo livre.”

Zilma fez cara de espanto, colocou a mão espalmada em frente a boca aberta e exclamou – Jesus, Maria e José!!!
-Viu Zilma, viu isso? Você acredita nisso que ele aprontou. Entregar uma redação como essa.
- Mas dona Ana, ele é uma criança. A senhora acredita nisso, um menino de 8 anos de idade, meu Deus!! Oito anos, isso é impossível!
- Claro né, Zil. Não é disso que eu estou falando. A merda que esse pirralho fez foi pedir mais uma vez ajuda para o desajustado do pai dele nos deveres da escola.

Paulo André entra pela porta da frente dizendo – Querida, cheguei. Nossos amigos estão vindo, com a sobremesa.

03 abril 2007

Andrucha no analista

- Doutor, eu não sou gay, falou Andrucha estirando-se no divã.
Dr. Frederico tinha 47 anos e muita experiência em consultório. Havia terminado a especialização de cirurgia torácica no início dos anos 90 e subitamente decidiu estudar psicanálise. Não se especializou em psiquiatria, pois iria levar muito tempo e Frederico não queria lidar com loucos. Queria ajudar pessoas normais com distúrbios de humor, depressão, mania, tinha certeza que seria bom nisso. Depois de alguns cursos de psicanálise e acompanhamento de uma clínica abriu seu consultório. Sucesso desde o antigo endereço na zona oeste, agora um confortável local cheio de mármore e móveis confortáveis na Avenida Europa. Apesar da experiência, admitiu uma certa surpresa na afirmação do rapaz.
Andrucha, a primeira vista, era gay. Rapaz de traços delicados, 27 anos, arquiteto especializado em decoração de interiores. Fazia análise com Frederico há alguns meses com queixas vagas de distimia, depressão leve, sintoma que foi mal elucidado durante as últimas consultas.
- Fale-me mais sobre isso Andrucha, ele sempre usava esse chavão.
- É isso mesmo, eu não sou gay, meu pai tem razão, minha ex-namorada também! O que eu fiz da minha vida?
- Calma Andrucha, sem histeria, vamos discutir melhor. Você está muito ansioso, percebo isso na sua voz. Fale-me mais sobre isso.
- É um horror, disse Andrucha fazendo movimentos com as mão no ar. Estou preso dentro de uma personalidade que não me pertence, gritou colocando a mão na testa e fingindo um leve desmaio.
- Fale-me mais sobre isso.
- Tudo bem, vou contar nos miíínimos detalhes para o Sr. Dr. Acontece que um dia vi que não gostava de futebol, preferia os seriados da Sony, principalmente os dramalhões, e algumas comédias também, principalmente as ambientadas em Nova York, aquele cidade charmosérrima com a Times Square ao fundo. O Central Park coberto de neve no inverno, todo mundo bonito e inteligente e ...
- Não se perca em detalhes Andrucha, conte a história, respire com calma.
- Desculpe Dr. Então, eu não gostava de futebol como os meus irmãos, e não gostava também de lutas, nem de corridas de automóveis, mas gostava de ginástica olímpica. Na adolescência tinha muitas amigas meninas, adorava seus diários cor-de-rosa, adorava as conversas e fofocas. Diziam que eu não gostava do mundo competitivo dos meninos, o que não é verdade, pois o mundo das meninas é absurdamente mais competitivo, competitivérrimo. Roupas, franja, amigas, acessórios, tamanho dos seios, tudo é competição. Nessa época tinha o hábito de ler muito, de romances a livros de história, de-vo-ra-va!!! Pensavam que eu iria virar um erudito com esse meu comportamento excêntrico. Em casa ninguém me reprovava, mas na rua já havia comentários entre os amigos do colégio. E nunca fui afeminado.
-Arrãm, compreendo, Frederico repetia isso em intervalos para parecer que prestava atenção.
- Com 16 anos, quando tirei o aparelho ortodôntico percebi que era bonito, deixei o cabelo crescer um pouco, comecei a cuidar das roupa que usava, escolhia a dedo com a minha irmã mais velha. Andava na moda e chamava a atenção. Sempre odiei esportes, mas comecei a malhar, corridas, um pouco de exercícios isométricos, para os músculos, sabe? Namorei a Gabriela, essa ex-namorada que falei. Ela era bem legal, mas não muito bonita. Chamava a atenção por ser também excêntrica, tinha umas unhas roxas liiiindas, pintava os olhos de preto, parecia uma vampira sensual. Transamos algumas vezes, mas isso nunca me excitou.
-Arrãm, compreendo.
- Decidi fazer arquitetura, pois não tinha paciência para medicina, talvez dermatologia. Veterinária nem pensar, adoro gatos, mas tenho horror a bosta de vaca. Economia ia me fazer vestir alinhados ternos de tecido importado, poderia fazer inveja com minhas gravatas ao pessoal que trabalharia comigo nalguma financeira, mas fora a vestimenta nada mais me agradava em finanças. Arquitetura caiu como uma luva, classe com quase só meninas, discussão sobre design, tendências européias, cores, formas, enfim, o universo da beleza. Nada de construir hospitais ou fábricas, eu queria era decorar salas de jantar.
-Arrãm, compreendo.
- Como eu era feliz nessa época... Jantares, festas, drinques sofisticados, Vogue, roupas e cabelos exóticos, seguindo as tendências sem atraso... E aí eu descobri que era gay, quer dizer, eu achei que era gay. Tinha que ser! Não me interessava por meninas, digo, sexualmente, pois a vida feminina me encanta, tinha um jeitão esquisito, que, admito, era muito mais parecido com o do pessoal da comunidade gay do que com os meus irmãos e meu pai. Achava homens bonitos, principalmente se bem vestidos. Nessa época também tinha mania de limpeza, muitos perfumes, mais de dois banhos por dia, estava quase depilando o rosto para ter um barbear per-fei-to!! Já tinha planos de entrar no ramo da decoração, até nome de viado eu tenho, porra!!
- Arrãm, compreendo. Fale-me mais sobre isso.
- E foi óóóóótimo... minhas amigas me deram a maior força. Comecei a freqüentar bares gays, que maravilha, que animação, quanta gente inteligente e bonita. A notícia se espalhou. Minha ex-namorada me ligou dizendo que eu estava equivocado. Minha família não tocava muito o assunto. Lembro ainda do meu primeiro Armani com gravata de seda javanesa, muito na moda naquela época, um horror hoje. Eu estava orgulhoso, era cool ser gay, até na profissão as coisas melhoraram, muitos clientes, as bibas têm bom gosto, e geralmente têm dinheiro. Malhava todo dia, abdome e peitorais de dar inveja. Tinha muita classe, e isso não é para qualquer um! Porém, nesses 8 anos de vida gay nunca tive um namorado, o Sr. compreende?
- Não, não compreendo. Fale-me mais sobre isso.
- Então, sabe como é... minha atração por homens é relativa, mas tinha certeza que era real, então dei tempo ao tempo, tinha certeza que logo ia acontecer. Seria fantástico, imaginava eu, alguém com classe, bonito, inteligente, admirável, tinha que acontecer. Mas não aconteceu. Enquanto eu curtia a maravilhosa vida gay conheci diversos rapazes interessantes, muitos realmente admiráveis, mas sempre botei obstáculos, fiz por muito tempo o papel da bicha elegante, intelectual, tipo o Will da Will and Grace, sabe Dr.? Assim pensavam que eu era exigente e por isso não namorava. Isso não me incomodava, ao contrario, estava sempre muito bem, rodeado de amigos e de uma vida sparkling!
- Arrãm, compreendo.
- Daí aconteceu que um dia, há algumas semanas, deixei de lado meu Côtes du Rhone e meu Châteauneuf du Pape e comecei a beber um Mojito bem do vagabundo num bar elegantésimo na Vila Madalena. Fiquei bem aéreo, parecido com quando fumei erva na adolescência, nunca mais usei drogas. Essa situação me deixou horny, muito horny, excitado. Um amigo, bonito e inteligente, sarado e bem vestido, que já havia me cantado algumas vezes no passado, começou a se engraçar comigo mais uma vez. Dançamos muito, e por um momento eu pensei que era a hora.
-Arrãm, compreendo.
- Nos beijamos na pista, e diferente do que eu esperava, não senti uma sensação maravilhosa de liberdade ou um tesão de dar nó no peito, não, não senti nada. Fomos para a casa dele, eu estava bastante bêbado. Ele tirou a sua roupa e a minha e começou a fazer sexo oral comigo. Não era ruim, mas tive uma sensação bizarra quando pensei que deveria retribuir o favor. Na cama, me lembro pouco das coisas, mas quando ele tentou me penetrar eu evitei. Sei lá, sei que minha região anal é uma área erógena, mas simplesmente não consegui imaginar que ser penetrado pudesse ser interessante ou gostoso. Ele entendeu como uma sugestão de passividade e se preparou para que eu o penetrasse. Ai Dr., fico até envergonhado de contar essas obscenidades para o Sr.
- Arrãm, compreendo.
- Então, penetrá-lo não seria uma tarefa impossível, mas tive um enorme asco de ter que tocá-lo, acariciá-lo, beijar seu pescoço ou algo assim. Porra, é um cara, um homem, um tipo peludo, de ombros largos, voz de homem, cheiro de homem, pé e mão de homem... impossível de me deixar com tesão. Inventei umas desculpas, fingi estar mais bêbado que estava, peguei um táxi e voltei para casa. No caminho comecei alimentar essa dúvida sobre minha homossexualidade. Cheguei em casa e me masturbei, depois de anos, pensando numa prima gostosa que tinha no interior, que hoje está um bucho depois do segundo filho, precisando de uma plástica!
- Arrãm, compreendo.
- E é isso Dr. Agora fico nesse dilema, minha vida é gay, as coisas que gosto são no mínimo metrossexuais, sou um decorador de interiores conhecido nas rodas GLS da cidade. O senhor entende? Não existe ex-gay....!!! Como é que vou fazer??
- Bom, Andrucha, estamos no final da sessão. Espero que você reflita bem sobre isso e conversamos mais na semana que vem. Não esqueça de acertar o mês com a secretaria. Bom dia.
Andrucha saiu do consultório, entrou em sua Mercedez Classe A prateada e voltou para seu loft no Morumbi. Tomou um banho demorado, passou creme no cabelo e um esfoliante no rosto. Fez a barba mais uma vez com todo o cuidado. Serviu uma taça de Porto e preparou uma salada Ardennaise com tomates secos e óleo de oliva marroquino. Vestiu um terno Zegna e foi ao Vert, um bar gay muito badalado na cidade. Chegando lá foi recebido espalhafatosamente por alguns amigos e logo estava numa roda conversando sobre a última exposição no George Pompidou em Paris. Quando foi pedir mais uma taça do almiscarado Beaujolais 1999 encontrou Sônia, a barista portuguesa que estivera de férias. Ela lhe serviu e comentou o vinho com seu sotaque lusitano. Tinha os cabelos lisos e pretos, curtos, mas ainda assim presos num pequeno rabo de cavalo que deixava muitas pontas caindo sobre o rosto. Vestia uma blusinha de alça verde musgo que ressaltava seus lindo seios, calça de skatista coberta pelo avental do bar, onde tinha um bloco, uma caneta e uma pequena toalha. Sorriu simpática cerrando levemente os olhos.
- Ah se ela não fosse lésbica!!!.... pensou Andrucha.