CARNE DE PESCOÇO

29 julho 2006

Bar na terra


-Deixa que eu espero, pode ir - eu disse - Mas volta logo que eles não devem demorar- Eu sabia que ele não ia voltar logo e que eles iam acabar demorando, mas vale o aviso. Não tem problema, nesse bar eu me sentia em casa.
Sozinho, sentado no balcão com a velha cerveja, pensando na vida. Se pelo menos tivesse algo para ler, pegar na mão, qualquer coisa, um folheto de propaganda de outro bar ou de alguma banda querendo mostrar serviço, um jornal seria perfeito.
Dei uma olhada ao redor, agora melhor que no começo. As mesmas caras em pessoas diferentes, a mesma decoração, outro mesmo garçom, a música é boa. Um namorado com a namorada lindíssima, de filme, sempre namorada de um outro. Discutia-se alto sobre um evento no Rio ou São Paulo de teatro ou cinema, ou seria exposição de arte moderna mexicana, eu não lembro, intelectualóides sempre falam alto... Uma outra alma sozinha, guria bem branquinha com um nariz ( é sempre o nariz) bem formadinho e um cabelo meio normal para o ambiente. Sozinha?
Entreti-me um pouco com as figuras do zoológico humano que circulavam. Que animal seria eu naquela fauna? Um macaco simples, que não desperta curiosidade, ou uma bela águia que não demonstra sua beleza por estar a centenas de metros de altitude? Não sabia. Bom, “veados” haviam em manadas. Alguns cachorros, bichos- preguiça, gaviões, leões, tigresas domadas, periquitas e algumas “Jessicas Rabits” ( ela é bicho ??)
A branquinha sozinha, que já havia então mostrado o rosto, muito bonito, seria, quem sabe, um coelhinho? Muito pornô. Uma gatinha? Muito fora de contexto, sei lá.
Parei de elucubrar sobre os figurantes da noite. Pedi mais cerveja. Os guris sempre atrasam.
Começou a tocar Marisa Monte. Meio cedo para MPB.
A guria sozinha tomava Hi-fi, me olhou e fez cara de que não estava entendendo nada, ou eu é que não estava entendendo nada? Vestia uma blusinha de lã branca sem ombros, umas pulseiras estilo praia ou coisa assim, era magra, de seios no tamanho ideal ( considerando o tamanho ideal aquele que cabe certinho na mão), usava uma saia comprida abotoada do lado, azul xadrez com uns verdes e sandálias, eu acho. Tinha uma expressão de seriedade que poderia se transformar em sacanagem nos momentos certos.
Entrou um pessoal barulhento.
Lembrei dos amigos, das conversas, das bebedeiras de outrora, das muitas e muitas risadas. Lembrei de ficar lá lembrando das coisas.
A guria ainda sozinha, definitivamente não estava acompanhada, comprimentou alguns sem muito entusiasmo. O que estaria pensando? Eu, também sozinho, já havia pensado em muita coisa para passar o tempo. Eu esperava alguém. E ela? Esperava algum namorado, amigas, ou estava sozinha porque curtia ficar assim? Se fosse isso não deveria estar tentando passar o tempo, deveria ter algum objetivo. Estaria fazendo algo grande, assim quieta e só? Por que não? E, deus, como era linda. Lambia os lábios a cada gole da bebida e o nariz bailava com o movimento da boca. Cabelos loiros, levemente ondulados, um pouco acima dos ombros.
Como seria a sua voz? Seria perfeito se fosse gaúcha - Tu é diondi ? Eu sou di Porto... Curitiba é tri... Tu vens sempri aqui? - Seria querer demais, numa voz meio rouca, meio suspeita, com aquele nariz mexendo. O sotaque catarina não ia ficar bem, nem o baiano, talvez paulista.
Tinha movimentos lentos, calmos, precisos. Descontraída.
No meio dessas introspecções ela me olhou, me sorriu uns dentes brancos numa boca elíptica. Baixou os olhos devagar e tomou o último gole do suco com vodca. Lambeu os lábios suavemente.
Perdi a tranqüilidade, tremi. Me apaixonei? Paixões rápidas e avassaladoras eram a minha especialidade, mas platônicas, sem direito a sorrisos, isso me deixou confuso.
Ela fez sinal para o garçom e pediu mais uma bebida. Continuava sem comunicar com ninguém. Parecia ter sido eu o único merecedor de alguma atenção. Eu poderia estar superestimando a situação. Será? Não.
Eles chegaram, nunca tão inconvenientemente na hora. Um já perguntou quem era a gostosinha sozinha numa mesa, e rapidamente falaram do outro bar aonde iríamos, e que também muito rapidamente fomos.
Nunca mais vi aquela guria.

13 julho 2006

Em busca do psicodelismo sagrado


Achou que a vida não era pra ser vivida do modo comum, por isso estava ali, procurando. Acordou junto com todos os outros do quarto, tomou café apressado. Meditou por instantes em frente ao seu livro santo e aí teve que sair dali. Atravessou o campo e entrou no bosque pisando em folhas úmidas pelo orvalho, sabia que deveria estar preparado para a noite. Deixou o encontro de religiosos para trás, as palestras e os ensinamentos que mais pareciam uma doutrina, não sentia nada de sagrado naquilo. E ficou lá, olhando pras árvores, até que ficou cansado e voltou. Encontrou as pessoas se abraçando e chorando, estavam todas tão envolvidas com as palavras do palestrante. Se soubesse que esse palestrante dez anos depois lhe trataria com desdém, teria ali mesmo o destratado, mas não sabia, então respeitou. Ficou quieto enquanto todos discutiam os ensinamentos depois conversou com seu melhor amigo que sempre o acompanhou. Conversou sobre como o invisível, estava quase ali e veriam se não fosse aquele véu que estava separando, já estava cansado de esperar. Passou a tarde se concentrando e de noite todos foram pro teatro daquele seminário abandonado. O palco de madeira, o ambiente inspirava nostalgia. A banda começou com acordes dissonantes, depois em harmonia, e daí bem lento, quase parando e depois rápido, muito rápido, todos pulavam corria suor pelo sujeito que cantava com voz forte e um violão na mão. De repente foi dito pra todos sentarem, todos sentaram no chão. Olhou pro lado e estava escuro só viu os olhos dos outros, fixos na banda. O baixo começou em notas graves, repetitivas, dudum dudum durumdurum, daí o teclado em som trêmulo e a guitarra em notas agudas, com ecos como se tivesse em uma caverna, então os pratos da bateria e tinha um que era como um gongo tchuaaaah, e todos ali, concentrados, ficaram um tempão tocando em voltas, em um espiral interminável, criando um clima. Sentia que uma neblina os envolvia, estavam subindo como se estivessem em um elevador e todos ali não estavam mais em si mesmos, então o sujeito com violão começou a cantar, a voz foi entrando nos corpos e fazendo vibrar os ossos. E o ritmo da bateria pulsava no compasso, a banda tinha conseguido a sintonia com todos. Ele balançava a cabeça de um lado pro outro, no ritmo, cada vez mais rápido, tinha certeza que era aquilo, tudo o que estava procurando estava ali, entrando e saindo, indo e vindo, flutuando. Fechou os olhos, daí quase chorou e pensou como seria sempre escutar isso, um transe. E música cresceu dentro dele, dançou como se dançasse um ritual, lembrou que seu amigo lhe falava sempre que nessas horas o ser transcendia. Transcendeu. E depois de duas horas a banda parou e ele continuava longe. Dali em diante resolveu que entraria na cruzada atrás do mais profundo. Levaria sua vida contemplativa enquanto seu interior nadaria em direção ao abismo do psicodelismo.

12 julho 2006

Ao velho primo-irmão Syd:


Noite escura e fria...
Quantos choram em silêncio;
sonham, vigiam, agonizam,
pecam em silêncio...
Quantos bebem a solidão,
amargam a desilusão, desesperam em silêncio...
Almas silenciosas velando o “Sono dos Justos”
Pensamentos cuidadosos em silêncio...
Quantos escrevem sofregamente como eu?
Alma escura e fria esperando a aurora...
...em silêncio!!!

primo-irmão Jóca

11 julho 2006

So don’t go away.....
Lembrava angustiado e feliz o dia em que ela lhe traduziu essa música. Não entende como não a beijou imediatamente, como não demonstrou a felicidade absurda que estava sentindo, como não caiu de joelhos e chorou naquele dia mais feliz da sua vida.

So don’t go away, say what you say, say that you’ll stay....

Um frio no peito lhe tomava conta quando escutava essa música, sofria, mas amava a sensação. Ia casar dentro de 4 meses. Tinha certeza que essa paixão ia acabar conforme a data do casamento fosse se aproximando. Tinha a noiva perfeita, como essa paixão poderia atrapalhar? Como casar com alguém pensando em outra? Como parar tudo agora? Ideias ilógicas, irracionais, como a sua paixão. Segurança ou aventura? A imagem da noiva aparecia-lhe por vezes sempre que lembrava de sua amada. Não era uma aparição repressiva, policial, chantagista, era uma aparição calma, com aquele sorriso simples dos melhores amigos. Isso não o agradava, não queria lembrar da noiva quando pensava nela, mas era impossível. Via a noiva como uma amiga, uma mulher admirável, forte, linda, engraçada, frágil... mas ardia em chamas por outra mulher.

Cold and frosty morning theres not alot to say about the things caught in my mind…

Não sabia se era correspondido. Inicialmente isso não importava, nunca importa para amores platônicos. Ela era apaixonante, quente, meiga, misteriosa. Fora de seu alcance, diria.
Naquele dia tinha deixado transparecer um pouco seus sentimentos. Difícil saber se ela compreendeu. Os julgamentos ficam como uma massa amorfa de pensamentos dentro de um caleidoscópio, não se tem certeza de nada. Ela sorria seu lindo sorriso discreto, aprofundava as covinhas no canto da boca, olhava-o como um anjo.
Falavam de trabalho enquanto abasteciam o carro no meio de uma carona para casa. A chuva e o engarrafamento renderam a idéia de beber algo no posto, relaxar e esperar um pouco. Ele tomou uma cerveja, long neck importada, ela um soft de gim. O som do carro tocava live forever. Ele disse que se identificava com a musica. Nesse momento já tinha medo de falar bobagem, já tinha ido longe demais na conversa anterior. Ela concordou com a ligação com a musica, mas mudou a faixa e disse, Essa me lembra você um pouco mais.

damn my situation…
and the games i have to play…
with all the things caught in my mind…
damn my education…
I can't find the words to say about the things caught in mymind…

Ela foi traduzindo lentamente, reforçando a angústia da virtual situação do autor. Ele nunca havia se sentido tão impotente, descoberto, mapeado.

cause i need more time…
yes, i need more time just to make things right…

Pensou em gritar, Te amo, me dá o tempo de resolver minha vida e fica comigo!!!
Pensou em beijá-la, docemente, chorar em seu colo.
Fez coisa alguma, elogiou o gosto musical, e só.

i don't wanna be there when you're coming down…
i don't wanna be there when you hit the ground…

Sua vida era um inferno astral não resolvido, todos seus concretos planos pareciam jogos infantis agora, as pessoas mais próximas viraram estranhos, não entendia como poderia ter chegado a tal situação. Tomavam decisões por ele, ditavam sua conduta, respondia por tudo, não tinha vontade nem personalidade.... um dia já tinha achado isso seguro, já tinha acreditado que seria mais fácil, já tinha até gostado.
Não tem certeza se pode ser um lobo da estepe, Isso é para intelectualóides irresponsáveis, dizia. Mais uma vez seus julgamentos se fundiam com seus critérios escolhidos ou desenvolvidos desde a infância, suas prioridades eram invisíveis, seus planos vazios, seu caminho era a maré, à deriva esperando o fim, mas seus valores eram fortes, sua personalidade ainda não estava totalmente ferida de morte. Sangrava, alijada de importância, mais ainda respirava.
Escutou a música mais uma vez, o peito ardendo. Só pensava nela.
Terminou de preparar seu baseado, cada vez mais difícil ter tempo e lugar, agora sempre escondido num teatro amador de mentiras, acendeu, deu a primeira baforada e disse para si mesmo, Hoje eu resolvo isso.