CARNE DE PESCOÇO

20 março 2007


Naqueles dias Zaratustra andava nas montanhas sem muito o que fazer, resolveu então esculpir os seus 8 mandamentos em pedras sabão.

1. Ame ao próximo como a ti mesmo e a Deus sobre todas as coisas. Essa não é minha, mas é boa. Mas primeiro, veja bem, ame a ti mesmo. Voce tem que ter amor próprio, se gostar e se permitir saber disso. Para então poder amar o outro como a ti mesmo. E não me venha com essa que ama a Deus, a quem ninguém vê, se você não ama nem a si nem aos outros.

2. Nada lhe pertence. Nem coisas, nem pessoas. Nem sua casa, nem seu carro, mesmo que seja fusca. Nem sua esposa, nem seus filhos. Nada lhe pertence, nada! Nem mesmo sua coleção de vinil. A sociedade lhe diz que é seu, ótimo. Usufrua. Mas nada lhe pertence.

3. Use o bom senso.

4. Não digo pra falar sempre a verdade, seria muita pretenção mesmo para mim. Mas seja sincero com você mesmo, com seus sentimentos. E quando não consiguir ser sincero, fale isso.

5. Tudo é ilusão. Ilusão é combustível de fracassados. Na verdade todos somos fracassados. Eu, você e o Bill Gates. Mas não é tão ruim ser fracassado.

6. Ria. Ria bastante. Quando tem vontande e quando não tem. Com os dois lados da boca. De gargalhadas. Exceto se for mulher, daí só ria. Mulher gargalhando não.

7. Não obedeça a mandamentos.

E vamos ao maior deles:

8. Beije os pés dos Mutantes, assim que você consiga. Só não vale a Rita Lee.

Assim falava Zaratustra.

13 março 2007

Os cavaleiros de carne de pescoço

A idéia é um blog de assuntos alternativos, internos, coisas que de nossa vida mas no cotidiano normalmente nos são privadas. E principalmente nossas opiniões exageradas. Fizemos alteregos, nossas próprias caricaturas ou, quem sabe, simples fakes.
Eu, Zaratustra, sou o pretencioso imcubido em ensinar sobre o homem, sobre o homem completo. Amargo, misantropo e autocentrado. Sem compromisso em agradar. Impaciente com os que pensam diferente. Incompreendido nesta tarefa, fui cobrado em ter mais respeito, ser bonzinho e politicamente correto. Decididamente não! Nietzche nunca me perdoaria.
Tonhão Leprechaum é o pé no chão. Está aí pra nos lembrar das coisas fundamentais como de onde vem ovos de páscoas e sobre esportes alternativos. Não curte psicodelia nem discussões sobre a arte. Tonhão é o tonhão, coloca brincadeiras interessantíssimas de “ache o O no meio dos QQQQs” e pensa que tá tudo certo, que é assim mesmo. Não chega a ser o Pedro Nego, mas quase... É indelicado e também egocêntrico. Não gosta de textos longos. Aliás Tonhão cade você? Como você deixa Mr Glass escrever essas intermináveis histórias?
Joca Barret é o psicodélico. Com suas idéias transcedentais que brotam de verdes veias. Hippie, viajão e roqueiro. Tem maior tolerância com as pessoas da “vala comum”. Mas é carne de pescoço também. Responde às críticas com velocidade viceral.
Acho que o humor nos argumentos do Tonhão e na criatividade do Joca salvam o blog das tentações literárias e talvez pedantes pro blog, para qual eu e o Mr Glass tendemos.
Mr Glass é o literato, com textos que começaram em viagens alucinógenas e agora flutuam entre personalidades cosmopolitas. Quase sempre mal resolvidas, mas quem é bem resolvido? E o único comentário que deixou pros ilustres colegas de blog foi um simples bom.
Não se atreveu em entrar em nossas brigas de carne de pescoço. Que começaram logo no primeiro mês. Contra Big Brother, criticarco, camisa listrada, bulgarian child, anônimos. E depois quando não tínhamos com quem brigar, brigamos entre nós mesmos.
Como dizia o cyberdingo estranha e feia tradição de debates acalorados. Mas carne de pescoço não é filé de salmão.


Zaratustra.

07 março 2007

Pele do pescoco

- Esse é um objetivo nobre e eu te desejo toda a sorte do mundo, ela respondeu quando ele explicou porque não aceitava o vinho branco acompanhando o jantar no avião. Havia dito que estava decidido a diminuir o consumo de álcool, deixar só para festas ou ocasiões onde uma alteração mental socialmente aceita e legal é necessária, como num jantar com uma linda amiga, numa festa de despedida de solteiro ou nos encontros de família. Essa era uma das várias decisões que havia tomado a partir de agora. Ela, uma portuguesa de cerca de cinqüenta anos, sugeriu pequenas doses de Porto como um tônico para a saúde, sem passar pela situação de ébrio. O jovem australiano na poltrona do outro lado disse, rindo, que maconha era a solução. Ninguém riu com ele. O avião chacoalhou em turbulência como se reprovasse a conversa.
Naquela manhã tinha acordado com dores de cabeça, um gosto horrível na boca, uma sensação de fome e náusea. Tonto ainda, olhos vermelhos, não tinha tirado as lentes de contato, lembrou que não estava em seu quarto, apesar de ainda não ter feito uma varredura do ambiente. Estava de ressaca e não em coma, tinha capacidade para lembrar que havia feito algo que não gostaria de lembrar. E sabia que iria se lembrar por muito tempo. A situação ideal de tudo esquecer, de tudo perdoar, de tudo compreender devido ao estado “úmido”, ou “cozido”, ou “alto”, “chapado”, “miando”, não acontece com freqüência. Ao contrário, parece pesar mais na consciência, atrapalhar a natural negação desenvolvida em milênios de evolução.
O quarto era estranho, mas a casa não. Caminhou com o lençol enrolado no corpo como uma toga, não havia encontrado suas roupas. Passou pela ampla sala e pelo sofá onde o ato foi consumado, ao menos uma vez. Suas roupas se espalhavam ao redor. Não sabia o que pensar, agora uma sucessão de possíveis desculpas lhe passavam pela cabeça e a percepção cada vez mais clara de que tinha feito bobagem.
Tomou um banho, a ducha acariciava seu corpo, queria ficar por lá por horas, ou dias. Achou graça da farmacopéia de xampus a disposição dela, para todos os tipos de cabelos, apesar de ela só ter um. Pour les cheveux très abimés, para os quebradiços, para os pintados, para os cacheados, para os lisos, anti-caspa, diversas marcas, diversos cheiros. Experimentou dois, pelo corpo todo. Lembrou que não tinha toalha, caminhou molhado até a gaveta da cômoda e escolheu uma de cor azul.
Nada a fazer, a não ser esperá-la. Chamava-se Francesca, uma italiana de Nápoles, gerente comercial júnior no escritório onde trabalhava. Charmosa, relativamente bela, longos cabelos castanho-claros, sotaque interessante. Calma e pouco expansiva, diferente da maioria dos italianos da empresa. Morava só, no centro da cidade, mantinha uma vida fora do trabalho, coisas simples que lhe davam prazer, alguns amigos. Não tinha namorado fixo e por vezes lhe dirigia o olhar de forma sensual. Nunca tinham conversado de verdade fora do trabalho, salvo raros e curtos happy hours nos pubs próximos. Nessas situações, muitos outros colegas de trabalho, especialmente os irlandeses, poderiam matar ou morrer para levá-la para casa. Ele não sabia com que freqüência isso acontecia, não se interessava, achava que pouco de qualquer forma.
Sentou no sofá vestindo as calças sem cinto e os tênis desamarrados e sem as meias. Manteve-se sem camisa. Ele deve chegar logo, foi comprar algo para o café-da-manhã. Ele não conseguia organizar seus pensamentos. Seus pensamentos eram em Marisa, cada unzinho deles.
Marisa, a bela brasileira, simpática, sorridente, tentando ser útil como estagiária das aplicações de derivativos, a mais interessante atuação do escritório na bolsa de Londres. Também calma e introspectiva, misteriosa em sua nova vida londrina. Mantinha uma amiga, também brasileira, no outro lado de Shepherd’s Bush, que a ajudou nos preparativos iniciais e no aluguel do pequeno estúdio para lá de South Bank. Porém parecia que vivia sozinha essa aventura nas terras da rainha.
Ele imediatamente foi atraído pela sua beleza discreta, pelas covinhas que penetravam seu rosto a cada sorriso, pelo seu olhar direto e brilhante. Imaginou qual seria o defeito ogro que saltaria daquela princesa.
Linda de olhar, e quando ela falou tudo melhorou, seu sotaque era algo ímpar, sua voz firme, ligeiramente anasalada, e o sorriso que acompanhava o ponto final das frases era estarrecedor. Ela moveu-se, e a maneira com que se sentava, como mexia o cabelo, como expressava inquietude, rancor, preocupação, como movia as mão quando tentava desenhar um objeto no ar para ilustrar uma explicação... tudo o deixava hipnotizado. Tinha certeza que seu pescoço era artesanal, não fazia parte da produção em série dos seres humanos comuns.
Ficaram amigos. Tudo o que ele não queria, esperava ainda o defeito ogro que ela tinha para mostrar.
Os happy hours ficavam cada vez mais happy e mais hours. Mudaram do pub “perto e tranqüilo” para o “de bom rock". Logo, trocaram o pub pelo teatro e pelo cinema. Com toda a coragem do mundo, comparável somente ao dia em que decidiu, aos 13 anos, parar de treinar rugby pra treinar futebol, decepção de seu pai monarquista, convidou-a para jantar. Marisa tinha uma vida ocupada fora de seu estágio de dos happy hours, estava há pouco em Londres e aproveitava cada gota da capital inglesa de uma forma bastante independente e intensa. Ela aceitou o convite sem deixar a menor pista se foi por educação, amizade ou apreço. Quebrando a rotina, pegaram a linha 93 e direção a Marble Arch, onde comeram num delicioso restaurante indiano. A conversa começou sobre as diferenças e semelhanças das vidas profissionais, a lembrança de alguns amigos supostamente em comum. Ela excitada, ele na dúvida. Jamais sentiu-se tão desintonizado, regozijava-se com cada gesto, cada frase, cada conceito, cada novidade, cada sorriso, cada gargalhada, cada descoberta, porém de uma forma quase paranóide reconhecia padrões de rejeição em cada um deles. Estavam virando amigos. Isso é ótimo, mas não excelente, já não sabia o que pensar.
O segundo jantar foi num pub com fish and chips perto da Oxford Street antes do Soho, o ambiente era legal. Depois foram a um bar marroquino para beber chá de menta. Padrões de rejeição, só pensava nisso, estava ficando cada vez mais estressado conforme ficava mais apaixonado. Discutiam acaloradamente sobre o certo e o errado, a esquerda e a direita, o azul e o vermelho, a vida e a morte. Os olhos dela brilhavam quando ele falava, brilhavam de gratidão, um clássico padrão de rejeição. Ela era sua prioridade, a imagem no plano de fundo de seu cérebro. Ele não.
Num final-de-semana atravessaram a Mancha e foram a Bruxelas. Moule frite, chocolate, parque Cinquentenaire, cervejas, e muito papo.
Abriu a história a um amigo que não a conhecia. Depois de fazer cara feia, como quem diz – Não é a primeira vez que te vejo com esse caso... E que se contentou de lhe repetir a auto-estima, a necessidade do risco, as chances sempre positivas.
Alta das bolsas, ganhos absurdos nos derivativos, festa de comemoração na sessão. Ela o convidou como “par”, já que não gostava dessas festas um pouco formais do trabalho. Ele aceitou com prazer, talvez bebessem algo depois, antes de ir para casa. Era sua chance. Num mundo ideal, perceberia sua aproximação, perceberia algo malicioso em seu sorriso, no canto do seu olho, no seu pescoço. Iriam concordar com a chatice da festa, beberiam um pouco de bourbon, poderia senti-la mais próxima numa dança lenta, da qual fariam graça da letra um no ouvido do outro, poderia sentir o perfume de seu pescoço, a textura da sua pele. Seria o momento de sentir Marisa mais humana, relaxada, resolvida, usando todo seu encanto mágico como se tudo se encaixasse perfeitamente, no tempo correto, como num romance de Saramago.
No começo da festa estavam desconfortáveis, muitos desconhecidos. Tinham vindo de black cab e estiveram estranhamente em silêncio durante todo o trajeto. Ela estava com o cabelo preso e seu pescoço nunca estivera tão perfeito. O primeiro whisky ajudou, já riam e conversavam, o segundo criou dois monstros divertidos da crítica ao vestuário alheio, começavam a se tocar, mãos nas costas, ombros. Separaram-se, depois de 45 minutos reencontraram-se, já no quarto whisky, e prometeram ficar juntos para evitar rodas de senhores investidores e suas mulheres que se alimentam de dinheiro explicando os problemas atuais com a caça à raposa. Sentaram-se e continuaram a conversa numa mesa afastada. A primeira música lenta tocou, muitos casais na pista, eles fizeram como se não tivessem escutado. A segunda não deu chance, “Every Breath You Take”. Ela levantou as sobrancelhas sorrindo, ele a conduziu ao salão. Ela apoiava suas mão em seus ombros passando por sobre seus braços. Ele a tocava com toda a palma da mão no meio das costas, tinha seu rosto no lado esquerdo, distante um palmo do rosto dela. Trocaram alguns comentários. Ela lhe apertou as costas, colocando uma das mãos espalmadas em seu dorso. Seus corpos ficaram mais próximos. Ele seguiu o movimento, abraçou-a com intimidade, ela respondeu imediatamente deixando sua cabeça tombar sobre seu ombro e assim expondo todo seu pescoço. Momento tranqüilo para muitos, mas estressante para ele. Ela era especial, era a prova viva de todas as suas teorias quanto a relacionamentos, era o ser perfeito que muitos não acreditavam existir, era a força motriz de uma vida sem aceitação de relações fracas e furadas na esperança do belo e complexo, do simétrico e do balanceado, do misterioso e curioso, onde quer que ele possa ser achado. Encostou seus lábios na parte de trás da sua orelha, respirou fundo, ensaiou um discreto beijo nos cabelos. Ela relaxou um pouco os braços – Rejeição!, mas chegou mais perto com a cabeça e encostou seus lábios em seu pescoço, sem beijo. Alguns eternos segundos nessa posição, para ele os melhores. Ela iniciou uma discreta carícia com os dedos da mão direita nos cabelos da sua nuca. Seu primeiro concreto e real argumento no tribunal da sua consciência, seu Id poderia ser convencido pelo seu Alter-ego de que isso se trataria de uma “anti-rejeição”, fervia por dentro. Ele desceu sua cabeça com os lábios em toda extensão de seu aveludado pescoço. Um cheiro que nunca mais vai esquecer. A música acabou, porém a orquestra não parou e já recomeçava outro tema, a maioria dos casais não se separou. Entretanto, Marisa desenlaçou seus braços e afastou-se sorrindo. Sentaram-se com outros funcionários do escritório. Ela começava a bocejar. Ele pediu mais whisky. Papo chato, quase meia-noite. Ela pegou carona com uma amiga e lhe deu um tchau de longe. Seu Alter-ego reduzido a uma miniatura que envergonharia Freud, seu covarde Id com um sorriso no canto da boca.
Começou a conversar com Francesca que acabara de chegar a mesa. Algum tempo depois ambos estavam bêbados. Gargalhavam sobre comparações de torcedores de futebol ingleses e italianos. Ela levantou para ir ao banheiro, ele a seguiu, e subitamente, no corredor, agarrou seus pulsos, pressionou-a contra a parede e começaram a se beijar. Continuaram no táxi e acabaram no sofá da casa dela.
No outro dia, esperou Francesca voltar com o café. Conversaram um pouco sem graça por trinta minutos e ambos inventaram compromissos para dentro de algumas horas.
Nessa noite embarcou no 737 da Virgin Airlines, direção Barcelona, para uma viagem de negócios.
Tinha feito tudo errado e se sentia ainda mais idiota, pois, apesar da sensação maravilhosa que teve, não conseguia resgatar a memória olfativa da pele do pescoço de Marisa.