CARNE DE PESCOÇO

12 dezembro 2008

Experiências

Ela desceu do ônibus, feliz pelo fim da viagem, chacoalhando por horas numa poltrona desconfortável. A rodoviária era suja e o populacho se fazia presente de forma imperiosa em cor e cheio naquele calor de 33 graus. Por um milésimo de segundo pensou que ele poderia estar esperando-a lá, talvez com um sorriso no rosto. Não estava nada combinado, ele não estava lá, nem estaria.
Pegou sua mala, desajeitada e foi caminhando para o que acreditava ser a saída daquele lugar. A forte luz do dia a cegou por alguns segundos e então ela pode ver a beleza paradoxal daquela cidade, o Rio de Janeiro. Pegou um táxi amarelo e ordenou,
-Copacabana, rua dos Moraes, paralela a Princesa Isabel, quase no Leme. O motorista mal respondeu, resmungou algo sobre o transito e partiu. Ela olhava pela janela, mordendo o lábio inferior num misto de entusiasmo pela cidade e pela aventura e o medo de ser ferida na alma. Pela beira-mar viu o posto 9, Ipanema, Leblon, o Arpoador e enfim Copacabana. Imaginou aquilo inundado de gente no célebre show dos Rolling Stones no ano-novo de 2006, imaginou aquilo inundado de figuras de livro vivendo Copacabana de 1968, imaginou Capitu, com seus olhos de cigana dissimulada, olhos de ressaca, tomando banho naquelas águas no século IX.
Em tempo, o taxista percebeu que se tratava de uma bela fêmea, ela tinha longos cabelos dourados (loiro com luzes), um rosto angelical, um pequeno e simétrico nariz com charmosas sardas discretas, olhos que variavam do mel ao verde claro, um boca com desenhados lábios ligeiramente saltados e, principalmente, vestia uma mini-mini-saia, que embora cobrisse o que devia no seu jeito correto de se sentar, dava assas a imaginação. Puxou conversa – Não é do Rio não? – Não, moro em São Paulo, mas sou do sul. –Vem a trabalho? Para esse congresso grande que está tendo? – Não, vou visitar uns amigos, só o final de semana. Evitou ficar falando com o motorista, um senhor quase calvo, magro, longos bigodes, óculos escuros estilo “Chips”, camisa aberta, correntinha do Flamengo. Quando desceu e foi em direção ao prédio da sua amiga o taxista pensou – Que belo ganha-pão que essa galega tem!
Subiu por um velho elevador barulhento, daqueles que se tem que abrir manualmente a porta pantográfica, até o sexto andar. Sua amiga não estava em casa, mas deixou a chave. Ela entrou, o apartamento reformado, muito bonitinho, como ela gostaria de ter um para si mesma. Decoração padrão, dessas que a gente encontra em lojas chiques de móveis, entremeada com belas peças e fotos de muito bom gosto. Sentiu-se a vontade, pegou uma cerveja na geladeira, um bilhete da amiga falava que sua merca preferida estava gelada. Estava com saudades da companheira de farra do passado, uma pessoa inteligente, brigando para lidar com as conseqüências de suas decisões burras, como todos nós. Pegou um baseado na bolsa e fumou muito pouco, para relaxar. A amiga chegaria logo, mas ela estava preocupada mesmo com ele. Deveria ligar agora? Havia combinado há dias de vir ao Rio para vê-lo. Haviam se conhecido no Rio mesmo, numa festa de outros amigos. Olharam-se, cheiraram-se, e estava decidido, só iam parar com o nascer do sol. Porém, a coisa foi além, quase até o pôr-do-sol seguinte, despediram-se jurando um novo encontro. Ela veio ao Rio, confusa, excitada, esperançosa, relaxada.
Ligou, ele não atendeu. A amiga chegou, abraçaram-se como ambas estavam precisando desse abraço há muito tempo. Conversaram confusamente sobre tudo ao mesmo tempo, sempre sorrindo, quase lacrimejando. A amiga perguntou do compromisso, ela respondeu que ainda não marcou nada com ele, um pouco embaraçada pelo fato dele não ter atendido o telefone. A amiga insistiu numa caminhada na praia nas horas finais de sol do horário de verão. Fumaram o resto do baseado e saíram de braços dados.
Caminharam de mãos dadas até depois do Copacabana Palace sem prestar muita atenção em nada, ligeiramente entorpecidas, como se soubessem que ambas possuíam toneladas sobre os ombros, atrás da máscara de beleza e felicidade jovial. A amiga era linda, muito alta, magra, testa arredondada, assim como as maçãs do rosto, olhos verde piscina, cílios longos, nariz quadrado, arrebitado, pequeno, quase uma capa de revista feminina, inclusive trabalhava como modelo. Seu único dom era a beleza, dizia, só precisava ser promovida de “mulher bonita em eventos” para modelo me moda... não estava sendo fácil.
Pararam na beira da praia, sorrindo, tomaram água de coco, e voltaram a falar da vida, das dificuldades, da razão de tudo aquilo, das diferenças sociais, do azar de ter nascido no país errado, com o sobrenome errado, com os dons errados... - Porra, amiga, disse ela, você é linda de morrer, todo mundo te adora. – Grande merda, porra, respondeu a amiga, eu nem sei falar inglês direito, sei nada além de ficar parada sorrindo, nem foder eu sei se fodo direito, pois os caras nem falam mais comigo depois que gozam, porra. Ninguém dá chance, eu não tenho os contatos, eu não passei para a lista das “aceitáveis” que podem eventualmente ser apontadas para algo melhor e começar algo, uma carreira, sei lá. Fico no limbo, bonita e comível, paga as contas. Não sou puta, não sou sacana, trabalho duro, mas não vai, não vai... lacrimejava.
Ela olhou a amiga com ternura, dentro de outro contexto sentia a mesma coisa, estava no Rio, atrás de um cara, e nem sabia bem o porque. Lembrou duma frase do Quintana: “jovem, a vida é bela e anda nua, vestida apenas com os teus desejos” e se pergunta... ainda é jovem?? Vestiu direito com os desejos certos sua vida nua? A finitude da vida nos faz encarar o abismo... lembrou de Time do Dark Side Of The Moon do Pink Floyd, outra ode a perda do precioso tempo da vida.... A amiga agora chorava copiosamente. Decidiu parar de pensar coisas tristes, levantou, chacoalhou a amiga, tirou a canga e foram exibir os belos corpos na praia. Deitaram e pegaram um restinho de sol que ainda conseguiu amornar docemente a pele clara das duas. Ela ligou mais uma vez para ele, nada, não atendeu. Voltaram gargalhando para o apartamento, já noite, perto de 21 horas. A amiga percebeu que ela não estava com nada oficialmente combinado com o tal cara, e como toda boa amiga não deixou a peteca cair, - Vamos no mais famoso sanduíche de pernil da Lapa, você vai adorar, o clima é ótimo, pessoal bacana, parte velha do Rio e perfeito para nossa larica, foda-se o regime. Pegaram um táxi e ficaram com conversa boba e gargalhadas espalhafatosas no banco de trás para o azar do motorista, agora um senhor idoso muito calmo. O sanduíche não poderia ser melhor, pão francês amanhecido, purê de batata, cortes finos de pernil com bastante molho gorduroso e uma coca-cola bem gelada. Um grupo de rapazes se aproximou. A conversa foi boa e ficaram interagindo por mais de uma hora.
Ela ligou mais uma vez, ele não atendeu. - Filha da puta, vim de São Paulo para ver esse merda e ele nem atende a porra do telefone, que mico que estou pagando! - Calma, disse a amiga, ou ele atende na próxima ou que se foda esse merda, tu tem o Rio de Janeiro todo pra ti. Ela ia começar a pensar nas possibilidades que o fizessem não atender o telefone, desde a mais branda até a mais dura, mas não quis perder seu tempo e decidiu ficar de boa, curtindo o bolo.
Decidiram sair dali, com o grupo de rapazes, e ir a outro bar escutar samba de raiz e MPB. Já bebiam caipirinha nessa hora, quase meia-noite, e ela resolveu ligar para ele mais uma vez. Nos últimos toques ele atendeu, - Querida, descuuuuulpa, estava com um puta problema por aqui, não deu para atender antes. Ela não quis parecer grosseira e cobrou pelo menos uma satisfação para não ficar preocupada, - Pô, você poderia ter mandado uma mensagem que estava ocupado, eu te esperava e não ficava preocupada. –Meu benzinho, desculpa mesmo, nem lembrei disso, estava só esperando resolver para te ligar, onde você está, vou te pegar. – Relaxa, deixa para amanhã, disse ela, agora já é tarde. –Não, insistiu ele, eu te pego onde você estiver, agora... Ela passou o endereço do bar, ele chegou em poucos minutos, cara de cansado, hálito de bebida, cheiro de cigarro nas roupas. A amiga disse, - Fica por aqui, não sai com esse babaca não! Mas ela não resistiu e saiu com ele. Lacônico, ele explicou confusamente o porquê da demora e também o porque não poderia demorar muito mais. Parou sem avisar num pequeno motel que tentava parecer de bom padrão, embora não fosse. Ela não teve tempo de argumentar, queria ver até onde aquilo tudo ia. Estava discretamente tonta, o que a deixava muitíssimo charmosa, algo desarrumada, cara de menina com personalidade, tudo o que um cara decente iria querer para uma relação interessante, profunda, prazerosa e bilateral. Mas não foi isso que aconteceu, transaram muito rapidamente, um pouquinho em cada posição, ela não curtiu em momento algum, e ele insistiu coercivamente para gozar na sua boca. De repente ela se viu num banheiro estranho, cuspindo porra estranha numa pia estranha. Olhou-se no espelho e, embora fosse ela, sentiu-se uma estranha para si mesmo. Voltou para o quarto, ele já estava vestido repetindo as desculpas de o porquê da pressa. Deixou-a na casa da amiga, que ainda nem tinha voltado do bar na Lapa e por fim explicou, também de forma confusa, porque não poderia vê-la amanhã. Talvez fosse a São Paulo no próximo mês e ligaria. Tchau!
Ela subiu os degraus da portaria, abriu e fechou a pantográfica do elevador, entrou no apartamento, sentou no sofá, colocou um DVD do Nirvana, fumou a ponta de um baseado e pensou. – Eu preciso ter uma filha para ensinar essa merda toda para ela.