CARNE DE PESCOÇO

22 fevereiro 2007

Na Pele

Sentiu uma dor abstrata, porém real, difícil de definir, quando a agulha cortava superficialmente sua pele. Mordeu o lábio inferior, cerrou os olhos. O barulho da máquina se assemelhava ao de uma broca de dentista, isso lhe fazia pensar que havia coisa pior. Estava feliz, com dor, mas feliz. Sentia a tinta escorrer, o jovem tatuador passava sua barulhenta “navalha” em intervalos regulares criando sua obra de arte. Ela tentava expirar a cada golpe, conselho de uma amiga que já havia passado por isso diversas vezes. Pouco adiantava. Tinha na cabeça “Good Bye Yellow Brick Road” com Elton John em seu imenso piano de cauda branco. Tentava lembrar por que lembrava dessa música. Lembrou de um bar em Chicago, um conhecido pub irlandês onde tocavam dois pianistas em dois imponentes pianos de cauda, pretos, colocados numa posição em que os artistas ficavam de frente um para o outro e tocavam em dueto numa comunhão impressionante. Músicas pop norte americanas animavam o público, toda uma cultura de uma sociedade que nos vende sua cultura era representada em pauta e ritmo. Cada década tinha sua vez, cada tema, seja cinema, política, nacionalismo, romance, família, guerra, tinha seu hino e essa discoteca era a enciclopédia do mundo ocidental do século XX. Nunca tinha percebido como isso era forte, pesado, denso. Mesmo ela, jovem garota do interior de um pobre país da América do Sul, se sentiu parte de tudo aquilo e tudo aquilo parte de sua vida. Imperialismo ou não, isso era fato. Num dado momento, o pianista da esquerda, um negro de quase dois metros de altura com uma voz mais doce do que seu tamanho sugeria começou a tocar pop inglês, Elton John, Stones, Beatles, Kinks, Who, acompanhado efusivamente por seu colega, um ruivo de Boston, no outro piano. O público continuava cantando tudo em alto e bom tom. O pop Inglês sempre compreendeu bem onde vender sua arte. Era desse dia, há alguns anos atrás numa viagem de trabalho, que lembrava de Good Bye Yellow Brick Road, cantada em coro pela massa de americanos médios.
Esqueceu da dor em meio a seus pensamentos. Também porque a região de pele onde fazia sua tatuagem, braço esquerdo do ombro ao cotovelo em toda a circunferência, já estava adormecida pelas dezenas de traços que faziam o contorno do desenho. O tamanho da tatuagem e o uso de cores pedia uma intervenção em dois tempos, mas decidiu que queria tudo no mesmo dia. O tatuador alertou que duraria mais de quatro horas e seria cansativo para ela. Respondeu que vinha cansada há muito tempo. Decidiu por um desenho em mosaico, não tribal, de cores vivas, amarelo, vermelho. Uma estrela vermelha seria central na parte posterior, as figuras geométricas sugeririam um peixe na face lateral, não era seu signo do zodíaco, e o resto seria a arte do tatuador, como sentisse melhor, desde que preenchesse, como a manga de uma camisa, tudo até o cotovelo. No passado achava seu braço “gordinho”, nesse momento não achava mais nada.
No pequeno estúdio, forrado de aquarelas nas paredes, hobbie do tatuador, um pequeno aparelho de som tocava Pantera. Várias pessoas entravam e saiam, conversavam com o tatuador num inglês londrino de rua, cheio de gírias, lindo. Estava no mercado de Camden Town, numa galeria com dezenas de lojas de artigos indianos e o cheiro de curry dos restaurantes ao redor se misturava com o do desinfetante que era espirrado em sua pele a cada minuto. O tatuador nunca lhe pôs a questão, talvez para não perder a cliente, talvez porque sentia no seu calmo sorriso que sua personalidade estava acima dessa questão, mas alguns dos visitantes perguntava se ela tinha mesmo certeza de fazer aquela tatuagem. Percebiam que se tratava de uma garota cuja maioria dos amigos nunca deveriam ter pensado em tatuar, cujo pai se orgulhava de seus dotes no piano clássico, cujo sonho da mãe era vê-la vencendo na carreira profissional e manejando uma família ao mesmo tempo, e que a sociedade esperava dela um pouco de audácia, algumas opiniões fortes, mas nada que atrapalhasse sua vidinha burguesa seguidora de regras. Já teve um corte de cabelo que combinava bem com um tailleur sóbrio e elegante. Não chegou a pintá-lo de alaranjado, mas já tinha algo mais prático e curto. Mudanças, periféricas no momento.
Tinha vinte e nove anos. Falava cinco idiomas, tocava piano, arriscava-se na pintura, poderia escrever uma decente crônica sobre as óperas de Wagner, jogava squash, havia se formado em direito numa excelente escola de São Paulo aos vinte e três, seu par no baile de formatura foi seu namorado neonatologista. Especializou-se em direito internacional e começou a trabalhar numa firma com três grandes sobrenomes, e nem tinha vinte e cinco anos ainda! Tinha o sonho infantilóide de conhecer o mundo. Assessorava transações comerciais com Hong Kong, por vezes com os Estados Unidos. Ganhava bem e já tinha sido promovida. Alugou um apartamento no Morumbi, morava com o tal namorado.
Num sábado de sol, acordou e não sentiu vontade de ir comprar o jornal, tomar o café da manhã na padaria chique do bairro nem de passear com seu lindo labrador bege claro chamado Elliot (originado do poeta americano T. S. Elliot). Não teve vontade de nada, não saiu da cama. Quando a coisa ficou séria, e a família já havia tentado a compreensão, a insistência e quase a violência, foi levada ao médico e começou a tomar remédios. Sem resultados, continuava sem chão, sem rumo, sem norte. Depressão reativa aos estresses da vida moderna, disseram. Foi enviada a um psicoterapeuta bastante famoso na cidade. Ele penetrou em sua armadura e a ajudou bastante a dissecar seus demônios. Depois de muito refletir, percebeu que estava no caminho errado. Pediu demissão da firma de advocacia e decidiu por uma vida nova e uma nova carreira. Seu pensamento cartesiano, associado a todas as sua qualidades, a fez decidir por outros rumos internacionais. Passou com honras no vestibular para diplomacia no Instituto Rio Branco. Comemoração em massa na família. Recomeçava a sorrir. Alugou um apartamento na Asa Norte, em Brasília, seu namorado ajudou a pintar e decorar. Ainda em “férias” antes de começar o curso, habituou-se com facilidade à vida cultural da capital do país, tinha até amigos no corpo diplomático do Itamaraty.
No início do ano letivo não teve vontade de levantar da cama, não quis vestir seu tailleur elegante. As razões eram tantas e tantas, inútil tentar explicar tudo à sua família, aos médicos, ao namorado... tudo era inútil e sem sentido, sua misantropia tomava proporções absurdas. Percebeu que tudo estava errado desde o início e que maquiagens duram pouco. Remédios e terapias seriam como acertos de detalhes de um mesmo molde.
Estabeleceu-se em Londres algumas semanas depois, com seu passaporte italiano. Morava com outras quatro garotas num pequeno apartamento em South Kensington, trabalhava como garçonete no WalkAbout do Soho. Como falava várias línguas, contava ser promovida assim que aprendesse a manejar bem copos e garrafas. Nos últimos meses conseguiu economizar os quatrocentos e cinqüenta pounds para a tatuagem, tarefa difícil com os pubs e as viagens ao continente, adorava a Holanda, consumindo quase todo seu salário. Teve seu primeiro verdadeiro orgasmo, bastante freqüente a partir de agora. Tinha muitos bons amigos muito próximos o tempo todo. Tinha muita tranquilidade. Colocava em prática sua nova filosofia: stay low, stay quiet, keep it simple, don’t expect too much, enjoy what you have, be self-sufficient, don’t get involved and let the world go to hell if it wants!!
A dor, depois de horas, começava a ser paradoxalmente gostosa, tatuados sempre diziam isso. Sentia saudades de Elliot.

06 fevereiro 2007

Liberdade



Lama até os joelhos – Meu deus se minha mãe me vê assim!! Pensou e riu. Olhou a sua direita, a vista pela trilha que leva a cidade de Lao Chai é de uma beleza grandiosa. Dezenas de montanhas rodeiam o vale, todas esculpidas como se deus brincasse de castelinhos de areia com elas. As curvas de nível, feitas para o plantio de arroz na montanha, estavam metade alagadas e metade secas nessa época do ano. Perdia-se no horizonte a quantidade de montanhas raiadas nessa região conhecida com “Alpes do Tonkin” onde vivem dezenas de minorias étnicas que são incrivelmente respeitadas em suas sociedades e tradições à séculos por chineses e vietnamitas.
Ela havia chegado à pequena vila no alto da fronteira chinesa nos primeiros raios do sol da manhã depois de passar a noite num trem noturno vindo de Hanoi. Dezenas de locais ofereceram alojamento e passeios pelas montanhas, mas ela evitou todos e foi direto ao minúsculo escritório de “trekking” do Sr. Nem. O cubículo se encontrava entre duas lojas de souvenirs e em frente ao que parecia ser um hotel de relativo luxo local, e relativo significa água quente e televisão. Sr. Nem não estava lá naquele momento, mas o jovem vietnamita, que comia calmamente seu “rice noodle soup", certamente do sul do pais, foi cordial e atencioso como esperado. Ela, com seu “Australish” lhe explicou que procurava um mapa das vilas ao redor, as melhores trilhas de trekking e informação de como dormir nas vilas com os locais. O jovem, com seu “vietnamenglish”, começou a sugerir diversos passeios e estadias, mas ela explicou à tempo que só queria o mapa e as informações, não estava interessada em descer com um guia, ou um grupo. Havia sido informada que no escritório do Sr. Nem poderia ter acesso aos mapas. Ele concordou com um imenso sorriso e começou a rabiscar um mapa, sempre explicando que para dormir em Lao Chai deve-se chegar antes das 16h e pedir abrigo às mulheres que estiverem tingindo tecidos na beira do rio. Ela agradeceu, comprou dele água mineral, um par de luvas de lã, aceitou um pouco de chá, pagou em Dong e deixou o troco.
Fazia cerca de dez graus e a neblina era ainda espessa naquela manhã. Na saída da vila percebeu três ou quatro grupos de turistas começando a caminhada, seguidos de dezenas de lindas crianças BlackHamong. As crianças, todas meninas, vestidas com suas saias bordadas, camisas enlaçadas e lenços coloridos na cabeça, seguiam os grupos, orientavam a rota, faziam brincadeiras e tentavam vender algum artesanato no final da caminhada.
Ela esperou os grupos avançarem um pouco, se quisesse estar entre os turistas teria pago um guia, preferia ir sozinha. Não sempre, mas desta vez sim. Apesar da bela viagem de férias, sentia-se triste nos últimos dias. A volta para casa depois de meses de trabalho no oriente médio, a falta de planos para um futuro próximo, várias coisas lhe incomodavam o sono ultimamente. Percebeu que uma menina, um pouco mais jovem que as demais, cerca de 9 anos, com suas belas roupas, porém sujas, e suas jóias de prata, lhe dirigia o olhar. A vila estava mais quieta e vazia com a partida dos turistas, e a menina continuava lá. Aproximou-se e perguntou lentamente em inglês – Você vem sempre aqui? A menina fez cara de quem não entendeu, e ela não sabia se não entendia inglês ou se não entendeu a piada (Vem sempre aqui? Um local que não sai daqui nunca). Riu sozinha. A menina sorriu e perguntou – Parlez français? macarronicamente. Ela sorriu e disse que não com seu sotaque australiano – English? e começaram a se entender. A menina hamong se chamava Tin, ou algo assim, tinha os olhinhos puxados, mas de uma forma diferente das crianças vietnamitas que tinha conhecido, estava bem suja, pele e roupas, mas guardava o cabelo bem penteado sob o lenço vermelho, preto, azul e dourado. – Do you wanna come with me till Lao Chai? A menina sorriu e assentiu com a cabeça como se ela houvesse descoberto a verdadeira razão daquele contato. Começaram a descer. A menina ia sempre alguns passos a frente como se não estivessem juntas. Passaram por um outro grupo de crianças e a menina, Tin, lhe ordenou que comprasse uma grossa vara de bambu verde para ajudar na descida. Ela obedeceu e tentou escolher a que lhe parecia mais adequada num mar de crianças que lhe ofereciam centenas de objetos e que lhe bloqueavam a passagem. Continuaram, as duas. Tin falava pouco, não respondeu às perguntas sobre pais e irmão que ela fez, mas comentou alguma coisa sobre os arrozais, com um sotaque um pouco britânico. As meninas não têm o privilégio de aprender a ler e escrever na cultura hamong, mas isso tem mudado com as escolas públicas, bastantes simples, nas vilas. O inglês, porém, vem de familiares mais velhos e o contato com os turistas.
Lama até os joelhos – Meu deus se minha mãe me vê assim!! Pensou e riu olhando a vista. – O que será que minha mãe vai aprontar para minha volta? pensava, Um longo discurso sobre as responsabilidades da vida adulta, uma avaliação de como sou preguiçosa, desligada, pouco feminina, suja, um gráfico excel mostrando como gasto tudo o que ganho, e é claro a indefectível comparação com minha irmã, que casa dentro de alguns meses. Sorriu com o canto da boca, as montanhas ao seu redor, Tin ao seu lado. Continuavam e a vista ficava cada vez mais bonita, dezenas de fotos e ela tinha certeza que seria impossível, mesmo assim, mostrar a grandiosidade de tudo aquilo. Caminhavam há mais de 4 horas, ela estava cansada, com fome, mas Tin sempre repetia, - Not far away, come on!!. Duas outras crianças juntaram-se a eles, sinal de que chegavam em algum lugar. Passaram por algumas casas e chegaram a uma pequena ponte suspensa que parecia ter sido retirada de um filme do Indiana Jones. Duas mulheres hamong vieram lhe vender tecidos e artesanatos. Ela não aceitou, apesar de achar tudo muito bonito. Tin a levou a uma casa no início da ponte onde estavam ainda alguns turistas comendo. Serviam omelete frio, pão, pepino, tomate, banana e laranja. O chá era por conta da casa e tudo por menos de um dólar. Sentou-se com um grupo de londrinos, trocaram informações sobre a caminhada, o tempo, a paisagem, a beleza das crianças, etc. Um sanduíche de omelete com pepino nunca foi tão bom. Lembrou quando ela e sua irmã brincavam de cozinhar e de como isso irritava sua mãe. Quase tudo irritava sua mãe, e enquanto sua irmã obedecia ou chorava ela geralmente respondia, questionava, impunha seu direito de criança até que palmadas ditatórias acabavam com qualquer brincadeira. Não acreditava tudo aquilo poderia ter tido vez na sua vida, o colégio interno, a depressão na adolescência, o pensamento fixo em suicídio, a falta de namorados, a falta de opções. Tudo era como sua mãe queria. Seu pai era seu poço de ternura, de palavras doces, de carinhos, de compreensão, mas não tinha o poder, ou a vontade, de mudar nada. Sempre achou que sua irmã tinha capitulado e, dada a guerra por perdida, consentia em obedecer. Hoje percebe que sua irmã nem se dá conta da guerra, segue por lavagem cerebral todos os conceitos que sua mãe sempre impôs, crê que são mesmo dela esses conceitos. Um dia irá perceber, mas daí será tarde demais, aí terá mesmo que capitular, deprimir e esperar morrer.
Tin a olhava de fora da casa, como se não quisesse perder sua “companheira” de vista. Ela chamou a menina para comer com ela ou tentar conversar, mas os locais não entravam na sala onde os turistas comiam. Terminando mais um copo de chá, ela saiu e foi imediatamente cercada de mulheres vendendo artesanato em prata, tecidos, batas, sacolas e bolsas e toda uma diversidade de vestimentas difíceis de entender a utilidade. Não pensava em comprar nada, mas acabou ficando com uma bela bata azul como recordação. Diferente das outras crianças, Tin não tentava vender nada, mas olhava tudo com muita atenção. Percebia nela algo de diferente, uma interação com o ambiente que fugia um pouco do habitual entre os locais, Tin desequilibrava um pouco o mar de lindas crianças hamong, era tímida, porém tinha uma profundidade absurda em seu olhar. Lembrou dos tempos do colégio interno, adolescente, quando sofreu de uma importante depressão, ao ponto de ficar calada pela simples razão de não encontrar razão alguma em dizer uma só palavra. Imaginou que sua amiga Tin poderia ser alguém assim, diferente, incompreendida, questionadora, instigante. Seja o que for, era com certeza feliz, isso se via facilmente no seu discreto sorriso e na maneira carinhosa com que todos a tratavam.
Atravessaram a ponte, alguns quilômetros no outro lado uma vila do povo Thay (nada a ver com a Tailândia). Roupas mais escuras, origem mais chinesa, mas sempre simpáticos. Tin tinha amigos por lá, e na vila ficava a pequena escola que freqüentava 3 dias por semana. As mulheres moíam arroz para fazer a farinha que ia fazer o pão e o “rice noodles”. Porcos e galinhas corriam por todos os lados. A meninas muito bem arrumadas, os meninos trabalhando nos arrozais. Algumas mulheres tingiam tecidos de um azul escuro na beira de outra curva do rio. Ela se aproximou, foi recebida com sorrisos, nem sempre com todos os dentes, e sentou-se ao lado delas. Perguntando sobre um lugar para dormir, duas mulheres ofereceram em uníssono um lugar. Uma delas explicou que outros 4 turistas ficariam com ela naquela noite, que o local era grande e os cobertores de lã de carneiro iriam afugentar o frio. A outra disse algo parecido, mas havia já 8 turistas. Ela escolheu o grupo com menos pessoas, a mulher thay imediatamente solicitou a algumas crianças para levá-la a sua casa. Pensou na sua mãe, que talvez nunca tenha tingido nada na sua vida, mas que gritava que o cuidado com uma casa e a criação dos filhos era uma tarefa dura, como se precisasse de uma medalha para fazer o que a humanidade faz há milênios. Os benefícios secundários eram explícitos nessa situação, sempre ganhava as discussões, sempre era a vítima, sempre impunha sua moral. Todos lhe deviam tudo por seu sacrifício e essa era a moeda de troca, nunca tinha ouvido falar de amor familial ou mesmo altruísmo. Todo o estado possui o seu aparelho repressor e sua propaganda, ela, como ditadora que era, também tinha o seu. Sua propaganda era o sacrifício que sempre fez, sua repressão a chantagem emocional lavando cérebros incautos. E assim o grande teatro continuava, quase sem razão de existir.
Na casa da mulher thay havia 3 peças, uma espécie de sala com cozinha, chão batido, sacos de arroz, um fogão improvisado, alguns materiais de cozinha sobre uma grande placa de madeira, tudo no chão. Dois quartos com 4 camas arrumadas no chão cada um. Mas o quarto destinado às visitas ficava fora, uma pequena construção em madeira com somente 3 paredes, sem porta nem janela, completamente aberto na frente. Algumas mochilas bastante pesadas já demonstravam a presença dos outros backpackers por lá. Ela escolheu uma cama no canto, as crianças lhe deram um cobertor grosso como uma palma e pesando uns dez quilos. Tin ainda estava por lá, sempre no meio das crianças thay, destacava-se pelo lenço colorido na cabeça. Conversou muito com as crianças, uma conversa baseada em descrições num inglês pueril sobre a vida, a escola, as estações do ano, os turistas, as diferenças de meninos e meninas, e todas riam muito quando o assunto era a possibilidade de um namorado. Os povos Hamong e Thay eram conhecidos pelo calor de suas relações amorosas. Meninas em idade de casar, cerca de 15 anos, iam bem vestidas ao “mercados” ou feiras que aconteciam a cada 3 dias em cidades diferentes e postavam-se ao lado dos pais como verdadeiros produtos. Os rapazes se aproximavam e tinham a árdua tarefa de conquistar a moça e os pais, não só com promessa de um futuro garantido, uma casa, um pedaço de terra, mas também nas artes do amor, da conquista, e na promessa de uma vida sexual próspera. Dada a importância do casamento e da fidelidade, essa era uma fase difícil para se fazer uma boa escolha. Não há bares, festas, e a música não é necessariamente festiva entre esses povos. Um casal é para sempre. Ela lembrou das eternas discussões sobre namorados e casamentos que havia tido com sua mãe. Depois de ser trancada por 6 anos num colégio interno só para meninas nos arredores de Melbourne, com 18 anos sua mãe exigia um noivo. Ela mal havia conhecido garotos nesses anos, e privada de todas as informações não fazia a menor idéia do que fazer. Era um E.T. de 18 anos, depressiva, nas praias australianas. Felizmente era linda e chamava a atenção de vários rapazes, mas com sua personalidade forte e falta de tato com o sexo oposto, pouco se passava de uma breve relação. Ela gostava, conhecia muita gente diferente, fazia amigos, transava. Mas sua mãe a xingava de imunda, suja, puta. Com 20 anos, início da faculdade, era considerada a Maria Madalena dentro de sua própria casa. A irmã com seu noivo começava a lhe reprovar também. Agora eram duas contra ela. Seu sonho, como de todas as fêmeas do reino animal e vegetal, era sem dúvida encontrar o rapaz ideal, com quem iria correr os riscos de uma relação estável de forma natural, mas não era sua culpa se isso ainda não tinha acontecido, porra, mal tinha vinte e poucos anos. Também não era culpa sua que os rapazes de Melbourne tenham o esporte com primeira prioridade da vida e deixavam as mulheres como talvez a quarta ou quinta. Invejava as sul americanas com todos aqueles brasileiros, colombianos, equatorianos, argentinos e chilenos ao seu redor.
A noite caía e uma janta baseada em arroz, omelete e frutas foi servida em pequenas porções no “quarto” dos turistas. As crianças permaneciam lá e os outros backpackers chegavam. Um casal de hippies australianos perto dos cinqüenta e dois irmãos do Marrocos, Hicham e Hassam. Conversaram sobre banalidades e turismo, contaram as mesmas coisas que contam a cada grupo de backpackers que encontram, visitaram alguns moradores, pais das crianças, e voltaram ao quarto. Tin havia voltado para sua vila hamong, ela gostaria de ter tirado mais algumas fotos dela, tão linda, tinha a impressão que a pequena estava sempre por ali a lhe dirigir um olhar profundo. Pensou na sua irmã e seu olhar submisso, sua expressão de concordância com os delírios de sua mãe. Mesmo quando discursava algum assunto do qual se sentia segura, percebia-se que tinha sempre uma dúvida no olhar, pronta a mudar de opinião na mais simples intervenção de alguém. Deus, mesmo as cortinas da sua futura casa sua mãe mandou trocar pois não eram de seu gosto, o que diabos ela tem a ver com a cortina dos outros!
Hassam era simpático, falava um excelente inglês, morava em Londres, viajava por diversão, backpacking pelo mundo. Trocaram idéias sobre religião, o fato do Marrocos ter uma sociedade muçulmana bastante aberta, história, rugby, e a diferença do céu no hemisfério sul e norte. Ela se beneficiava do cruzeiro do sul e de uma visão particular da via-láctea em Melbourne, mas o céu do Vietnam longe das grandes cidades, sob um frio de cinco graus protegida somente por um grosso cobertor de pele de carneiro, era também um espetáculo. A conversa com Hassam ia tomando rumos íntimos, o silêncio reinava na pequena vila, fogueiras apagadas, somente a luz da lua crescente. Foram para a beira do rio com os cobertores, deitaram sobre as pedras. Sob o mesmo cobertor Hassam começou a lhe beijar carinhosamente o pescoço. Ela olhou para o céu, uma sensação de liberdade incomensurável tomava conta da sua alma, uma liberdade tranqüila, natural, sorridente. Lembrou de sua mãe aos berros dizendo que era mais velha, mais experiente, estava nesse mundo a mais tempo e por isso sabia como as coisas deviam ser. Passou as mão nos cabelos de Hassam e sussurrou para o céu – Mãe, você já estava aqui quando eu cheguei, porém eu vou ficar depois que você partir.