19 dezembro 2006

Vida

Ela acorda primeiro. Beija o marido, vai ao banheiro. Escova bem os dentes, passa os cremes, escova os cabelos. Veste-se. O marido mal sai da cama. Abre as janelas do corredor, neva lá fora, o dia começa a iluminar a casa. Acorda a pequena com beijinhos na nuca, ela ri. Vão juntas ao chuveiro, a pequena sai limpa, mas ainda com sono. Escolhe a meia, mas não tem direito de escolher o uniforme do colégio, sempre o mesmo preto e verde.
Descem para a cozinha, o pai está saindo do banho. Preparam sucrilhos de chocolate numa gamela de leite como entrada, decidem que o prato principal será torradas com geléia de uva (chimia, diz ela) e a sobremesa um kiwi cortado em cubinhos. Divertem-se. Para o pai, café com leite e pão com manteiga, depois um copo de suco de fruta para tomar os comprimidos. O jornal está lá para ele dar uma olhada durante o café. Conversam animadamente. Ela apura o pessoal comentando o avançado da hora. A pequena arruma sua malinha com cadernos e canetas. O marido organiza sua pasta, ela acerta sua gravata e beijam-se com ternura. Ele parte na BMW com a pequena no banco infantil no assento do passageiro. Curta viagem até a estação, onde ele pega Bruxelles-Midi e a pequena o ônibus da escola local.
Em casa, ela arruma superficialmente as coisas da cozinha, a empregada ajeita e limpa à tarde. Sobe para o quarto, fecha as cortinas e começa a chorar. Chora por 40 minutos. Levanta-se abruptamente, abre o laptop, escolhe um pouco de Kinks, Rod Stewart, Oasis, Evanescence, só as lentas e tristes, depois Mogwai. Poe a seqüência para tocar, prepara um grande baseado diluído em Marlboro, fuma calmamente escutando “Well I'm not dumb but I can't understand why she walked like a woman but talked like a man....Oh my Lola la-la-la-la Lola la-la-la-la Lola…”
Sua cabeça viaja à mil, ela chora copiosamente no fim do baseado. A música continua. Desce as escadas lentamente com a doçura das pessoas hipersensíveis pela droga. Aninha-se no sofá como se estivesse absolutamente protegida num útero privado, cada contorno do sofá é prazeroso. Liga a TV tela plana de última geração, põe um DVD da marcha dos pingüins imperadores, ou algo assim, sem o som. Vai à cozinha e coloca uma pizza congelada no forno. Sai na sacada, tropeça e quase cai na rede, pouca coordenação motora, ri, quase gargalha, está frio. Volta, pega a pizza, enche de óleo de oliva e catchup, come e toma quase um litro de coca cola. Deixa tudo na mesa da cozinha. Tenta, sentada no chão da sala e com a cabeça no sofá, ler um capítulo do novo livro de Extebarría, que ela ama, mas está muito difícil. No laptop, o pop singer da vez, com cara de doente e cabelos quebradiços canta “but I’m a creep...”. Muitos conhecidos no MSN, mas ela não tem condição de conversar com ninguém, nem quer. Já deixou o celular tocar 2 vezes. As empregadas aparecem, uma polaca e uma walon, no black, vão fazer uma grande faxina. Ela sobe para o quarto. Toma dois comprimidos de Stilnoct. Cansada, manda um email para um amigo da faculdade que ainda mantém contato, trocando experiências existenciais medíocres da vida. Chora ainda. Dorme taquicárdica por horas. Às 18 em ponto acorda e toma seu banho. Põe roupas de casa, arruma um pouco o cabelo, toma 2,5mg de Xanax. O marido e a pequena estão chegando, cheios de neve. A pequena pula em seu colo e dispara uma centena de informações sobre a escola e a dificuldade de estacionar o carro do papai na estação. O marido lhe dá um beijo e elogia seu perfume. Ela pergunta se querem que ela faça algo ou preferem jantar fora, duas opções, o lapin à gueze da brasserie Waterloo ou comida Viet e Thai. Escolhem a segunda opção pois sabem que ela gosta mais. Riem e brincam. Voltam para casa fatigados. A pequena com deveres, o marido no computador, ela pensando no que fazer amanhã à tarde.

6 Comments:

Blogger Zaratustra said...

esses impotentes sempre arrumam uma belle d'jour

5:02 PM, dezembro 20, 2006  
Blogger J. said...

e a vida segue, sem entido algum... muito legal o texto!

2:03 AM, dezembro 21, 2006  
Blogger Sujeito da camisa listrada said...

Cada um com sua rotina, gostei do conto

4:51 PM, dezembro 21, 2006  
Blogger Vênus de Willendorf said...

...I pushed her away
I walked to the door
I fell to the floor
I got down on my knees...

11:20 AM, dezembro 22, 2006  
Blogger Rafa Kondlatsch said...

Boa história, mas ela ouve Mogwai e não se mata?

8:34 PM, dezembro 22, 2006  
Blogger Marco Aurélio said...

Quando acabar o maluco sou eu...

9:13 PM, dezembro 22, 2006  

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