19 maio 2007

A luta contra o demônio.

As três figuras épicas de Lennon, Presley e Raul têm estranhas afinidades nos seus destinos. Todos os três arrancados do seu próprio ser por uma força poderosíssima e de certo modo sobrenatural, são levados a um calamitoso torvelinho de paixões.Todos três terminam prematuramente a vida, com espírito destroçado e um mortal enervamento dos sentido, parecem que viveram sobre o mesmo signo; passam pelo mundo como rápidos e brilhantes meteoros, alheios a sua época, incompreendidos pela sua geração, para se submergirem depois na noite misteriosa da sua missão. Ignoram para onde vão; saem do infinito para se fundirem de novo no infinito; e na sua passagem, apenas roçam pelo mundo material. Neles domina um poder superior a própria vontade, um poder que não é humano os detêm. Não os dirige a vontade(cheios de angústia eles próprios o percebem, nos momentos de clarividência). São escravos. São cativos(no rigor da palavra) no poder do demônio.
Demônio, demoníaco. Essas palavras sofreram já tantas interpretações, desde o seu primitivo sentido místico-religioso da antiguidade, que se torna necessário tomá-las com uma interpretação pessoal. Chamarei demoníaca a essa inquietação, inata e essencial a todo o homem, que o separa de si próprio e o arrasta para o infinito, para o elemental. É como se a natureza lhe houvesse deixado uma pequena quantidade daquele caos primitivo dentro de cada alma, e essa pequena porção quizesse apaixonadamente volver ao elemento de onde saiu: ao extra-humano, ao abstrato. O demônio é, em nós, esse fermento tormentoso e convulsivo que impele o ser, por mais tranquilo que seja, para o perigo, o excesso, o êxtase, a renúncia e a própria anulação de si mesmo.
Na maioria das pessoas, no homem medíocre, essa magnífica e perigosa ascenção da alma é prontamente absorvida e esgotada; só nos momentos de isolamento, na crise da puberdade ou naqueles minutos em que por amor ou por simples instinto genésico, esse cosmo interior entra em ebulição; só, então, domina, até nas existências burguesas mais vulgares e, sobre o espírito, reina esse poder misterioso que sai do corpo, essa força gravitante e fatal. Mas o homem comedido anula essa força estranha, sabe cloroformisala pela moral, abate-a pelo trabalho e a contém pela ordem, porque o burgues é inimigo mortal de qualquer desordem, seja em si próprio, seja na sociedade em que vive. Em todo homem superior, porém, e sobretudo se possui o espírito criador, encontra-se uma inquietação que o faz seguir sempre para diante, descontente de seu trabalho. Essa inquietação está em todo "coração elevado que se atormenta"(Dostoiewski); é como um espírito inquieto que se estende sobre o próprio ser como um anel para o cosmos. Tudo o que nos eleva acima de nós mesmos, dos nossos interesses pessoais, e nos leva, cheios de inquietude, para interrogações perigosas, devemos agradecê-lo a essa parcela demoníaca que todos nós trazemos. Mas esse demônio interior que nos arrasta é uma força amiga quando conseguimos dominá-la; seu perigo começa quando a tensão que desenvolve se converte em hipertensão, em exaltação, isto é, quando a alma se precipita no torvelinho vulcânico, porque esse demônio não pode alcançar seu próprio elemento, que é a imensidade, a não ser destruindo todo o infinito, todo o terrestre; e assim o corpo que o encerra dilata-se primeiramente, porém termina por estalar sob pressão interior.
Por isso apodera-se dos homens que não sabem domá-lo a tempo, e enche as naturezas demoníacas de terrível inquietação. Depois, com as suas mãos poderosíssimas, arranca-lhes a vontade, e eles,assim arrastados como um barco sem governo, se precipitam contra os rochedos da fatalidade. É sempre a inquietação o primeiro sintoma desse poder do demônio; inquietação no sangue, nos nervos, no espírito. Em torno do possesso ruge sempre um vento perigoso de tormenta, e sobre ele se abate um céu sinistro, tempestuoso, trágico, fatal.
Todo o espírito criador cai infalivelmente em luta com o seu demônio, e essa luta é sempre épica, ardente e magnífica. São muitos os que sucumbem nesses abraços ardentes; entregam-se a essa força poderosa. Outros o dominam pela vontade, às vezes esse abraço de luta amorosa prolonga-se por toda a vida. Ora, no artista, essa luta grandiosa e heroica se torna visível, pode-se dizer, nele e na sua obra; e no criador esta viva e palpitante, cheia de cálido alento, a sensual vibração dessa noite de núpcias da sua alma com o eterno sedutor. Só o espírito criador é dado o sortilégio de transladar essa luta demoníaca, nos seus obscuros detalhes, a luz do dia, para a linguagem falada ou escrita. Mas é nos que sucumbem a essa luta que podemos ver mais claramente os rasgos passionais; e sobretudo no tipo de artista arrebatado pelo demônio.
Quando o demônio reina como amo e senhor na alma de um artista, surge como uma labareda,uma arte caracteística; arte da embriaguez, da exaltação, de criação febril; arte espasmódica que arrebata o espírito, arte explosiva, convulsa, de orgia. O primeiro sinal ardente dessa arte é o iluminado, o superlativo; um desejo de superação e um impulso para a imensidade que é onde quer chegar o demônio, por que ali está seu elemento o mundo da onde saiu. Lennon, Presley e Raul são como Prometheus que se precipitam cheios de ardor contra as fronteiras da vida, de uma vida que,rebelde, rompe todos os moldes e no extremo do êxtase termina por se destruir os seus corpos e apagar os seus espíritos. Nunca se vê claramente o demônio que se abriga no ser, senão quando pode ser mostrado através da alma destroçada pelo tormento, rota em terrível crispação e é através dessas fendas abertas que se vê as obscuras sinuosidades onde se oculta o hóspede terrível.

3 Comments:

Blogger Zaratustra said...

Mas o olho do observador contemplativo é infestado pela alucinação de ter um demônio dentro de si.

Embora... um padre, muito amigo meu, dizia que a inquietação não é obra do demônio. A indiferença essa sim é demoníaca e destrutiva.

10:30 PM, maio 20, 2007  
Anonymous Anônimo said...

A inquietação é um "Demonio" para os 'burgueses'.
"Anjo Vingador" para mim!
Seja bem vindo companheiro Castaneda!!!

12:54 PM, maio 21, 2007  
Anonymous Anônimo said...

Da coletânea ´´Suspiros Poéticos sem Saudades´´:

Angústia Subdesenvolvida

Vozes velosas cessaram o pranto
Calaram milhões de corações alados
Espera assim, o tirano, sentado
Mandar derramar o óleo esperado

Já fora de rosas, em plena agonia,
Passeio alarmado por vozes velosas
Quem dera ser tolo, e morrer sorrindo
Na interminável alegria dos que nada sabem

Repara você a felicidade dos antas
Entra tantas ancas e quase nada sonoro
Qualquer batucada lhes faz chacoalhar
Qualquer resquício de intelecto passa por louco ou rebelde

Demagogiado no pranto de vozes velosas
Responde assim o pobre correto
De quê me adianta tal filosofia,
Se por estrelas do norte serei eu guiado?

Pudera eu nas paradas de angústia
Armado de meus brinquedinhos de liberdade
Correr o mais rápido que pudesse
E me afogar num Big Mac.

(11/08/99).

10:54 AM, maio 28, 2007  

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